segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O Dia Em Que Dante Sorriu

Certa vez, há muito tempo atrás, existiu um ser que definiu tudo o que você conhece hoje e chama de sentimentos e/ou emoções. Ele foi a cobaia de uma força suprema para dar mais estética e elegância aos habitantes daquela massa arredondada. Num dia como outro qualquer ele acordou e teve a sensação de estar se afogando. Não era um sonho, premonição, paranoia. Sentia um peso nas costas, uma respiração sufocada, um desespero perante aquilo que ele conhecia como vida. Algo estava definitivamente errado. Observou tudo e todos ao seu redor, mas tudo estava igual. E todos eram iguais. Sozinho, esse aperto no peito o sufocava e ele passou a ver em preto e branco. Chamou esse pesar de agonia.
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Agora como uma figura fora de foco, transtornado contemplava o monocromático ao seu redor. Sua face estava rígida. Caminhou por um tempo entre os demais, apesar de ser diferente sequer foi notado. Ele olhou para cima e viu o sol. Não lembrava que cor ele era. Quis sentar-se, estava exausto. Apenas uma caminhada e parecia que tinha carregado a cruz até o calvário, o corpo chicoteado e espinhos perfurando a cabeça. Não queria falar com ninguém, mas havia gritos na sua cabeça. Estava parado, sem qualquer lugar em que quisesse chegar e algo dentro dele debatia-se. Apesar de toda confusão lá fora a vida sem vida passava em câmera lenta. Uma lágrima lhe molhou o rosto e chamou essa agonia de tristeza.
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Queria fugir dos seus pensamentos, mas não tinha outra companhia. Passou as mãos no rosto e sentiu essa coisa molhada. Esse sangue transparente. Estava tendo hemorragia, a alma estava doente. Não gostava disso. Queria ter o controlo de si. O que estaria acontecendo? Revoltado, sentiu algo quente percorrer o seu corpo e um frisson eriçar seus pelos. Sua visão começou a ficar escarlate e podia sentir suas veias tamborilando reagindo às batidas frenéticas que batiam no peito. Sentado abraçou as pernas e apertou forte os braços. Suas unhas fincaram a pele até algo quente e vermelho escorrer entre seus dedos. Levantou e começou andar entre os demais, esbarrando-os, provocando-os. Por que esse ser e não qualquer um desses? O que ou quem estaria usando-o como brinquedo para um frio divertimento? Tudo continuava vermelho em sua frente e os sons esvaíram-se de seus ouvidos. Entrou em casa batendo a porta e arremessando qualquer coisa que estivesse por perto. Quem estaria assistindo esse teatro real? Apenas chamou essa triste cena de ira.
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 Ofegante parou tentando ter consciência de si. Que idiotice quebrar as suas próprias coisas! Voltou a enxergar as cores, mas elas estavam pálidas. Encarou-se no espelho. Aquilo na sua frente era um reflexo do seu eu desconhecido e intocado. Suado, machucado, descabelado, horrendo. Mas tinha mais. Nos olhos. Foi tocado pela ira e sabia que ela viria de novo a qualquer momento. Não sabia o porquê, mas sabia disso. Esse ser não é só uma cópia dos demais seguindo um padrão de comportamento. Se o que quer que fosse que está acontecendo com ele acontecesse aos demais o caos desencadearia definitivamente. Eles descobririam limites e extremos e os estrangulariam. Eles não podem saber do que são capazes! Então chamou esse dia de inferno e culpou alguém a quem deu o nome de Diabo.
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Quem seria ele, ele não fazia ideia. Descreveria a dor e o sofrimento do inferno e um ser que imperava sendo a forma viva do mal. Encarou-se mais uma vez. Teve pavor daquilo que via. O pulsar que tinha se acalmado voltou à sua histeria frenética. Olhava para todos os lados agora a espera de algo acontecer, alguém aparecer. Algo invisível apertava fortemente o seu abdômen e a respiração voltou a ficar pesada. Estava estranho, seus sentidos aguçados. Ouvia cada passo dado lá fora, cada inseto que voava, cada matéria que o vento tirava do lugar. E cada novo sussurro que o silêncio gritava o aperto no abdômen ficava mais forte, um tranco no peito e alguns segundos segurando a respiração. Estava estagnado com tudo o que estava lhe acontecendo e chamou a isso de medo.
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Mais uma vez tentando ter controle de si fechou os olhos e respirou fundo. Algo tinha mudado. Foi um alívio que sentiu. O peso não estava mais lá. Pelo contrário, estava leve. Sentiu seu rosto perder a rigidez e seus lábios abriram-se num sorriso inesperado. Permaneceu um bom tempo assim, parado e de olhos fechados apenas saboreando essa tranquilidade que sentia. Não estava mais se afogando, as cores estavam fortes. Na verdade tudo voltou a ser como antes e notificou que aquilo o agradava. Reconhecer a rotina e as coisas que estavam ao seu alcance. Iria limpar a bagunça, fazer curativos onde tinha machucado, cozinhar algo para comer. A repetição o agradava nesse sentido. Oscilou em sua serenidade quando não conseguiu dar um nome àquilo.
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Não queria que essa sensação passasse nunca e tratou de ocupar-se em limpar e por tudo de volta no lugar. Que dia foi esse? O que realmente aconteceu? Queria conversar com alguém. Mas não qualquer alguém. Pois se falasse para qualquer alguém o teria como louco. Precisava de alguém para compartilhar o que tinha vivido e até sentido. Um alguém que, se possível fosse, tivesse também passado por isso. Mas como explicaria o inferno, a ira, o medo, a angústia para alguém se eram palavras inventadas por ele para o que estava vivendo? Pensando melhor, não queria esse outro alguém tivesse passado por isso. É ruim. Queria alguém que se conectasse a forma que ele via do que ele conhecia como vida. Mas não queria que esse Ser sofresse. Arranjaria uma forma de lhe explicar tais emoções. Quis encontrar esse ser e cuidar dele. A paz foi embora ficou com essa necessidade de doar-se. Ficou um pouco bravo por sair de sua calma. Queria-a de volta. Contudo tinha esse ser que nem conhecia, mas já conhecia o que sentiria por ele e chamou de amor.
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Então estava amando. Abriu outro sorriso, esse mais largo agora. Percebeu-se distraído, olhando o nada e algo que voava dentro do seu estômago. Estava quase tudo no lugar. Estava irritado, mas ao mesmo tempo bem com isso. Ansioso, mas tranquilo. Estava definitivamente contraditório. Não queria explorar muito esse novo sentimento. Teve medo dele. Agora podia definir melhor para si mesmo o que sentiu: “teve medo dele”, e isso o agradou. Olhou tudo agora limpo e organizado, estava em casa. Chamou sua morada de paraíso.
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Sentiu a temida ira se aproximar ao se dar conta que não encontraria o seu alguém. Percebeu quantos planos tinha feito em tão pouco tempo, tempo contado na realidade do sonho, onde o tempo é irreal e os sonhos a única verdade. Queria alguém para ver, falar, tocar. Que fosse real no mundo real. Sentiu-se filho único da Terra. Mais do que nunca se sentiu sozinho e achou coerente chamar isso de solidão.
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A ira ficou mais próxima. Um tanto misturada com a tristeza, agonia, medo. Não achou que fossem possíveis todas juntas. Era um pouquinho de cada. Queria sentir de novo aquilo bom. Nem nome tinha dado ainda. Seria possível sentir aquilo permanentemente? Mas quaisquer das minhas novas palavras seriam possíveis instalar-se em mim? Queria sentir aquilo até o fim daquilo que conhecia como vida. Então sua existência seria voltada à eterna busca daquilo? E o que conhecia sobre aquilo para fazê-lo voltar? E se nunca mais voltasse? O autor dessa brincadeira teria as respostas ou ele mesmo está me usando para chegar às respostas? Como numa luz chamou esse autor de Deus e seu novo desejo de busca em felicidade.
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Já era fim desse dia estranho e resolveu dar mais uma volta. Ao chegar à rua parou assustado. Estava tentando entender em que realidade paralela ele teria sido jogado. Viu alguns dos outros fora de foco, sentados no chão abraçando as pernas, alguns esbarrando nos outros. E de repente percebeu algo. Eles não eram todos iguais. Padronizados sim, mas tinha outra coisa. Alguns tinham certa graça especial, delicadeza, elegância. Suas formas eram mais arredondas. Os outros eram mais altos, de aparência mais rude, porém de confiança. Uma ideia então o ocorreu... Eles deveriam andar em pares. E poderia explicar a eles o que estava acontecendo. Dizer-lhes os nomes. E antes que se julguem pela ira desmedida digo-lhes que é obra do Diabo para que essa transformação não afete a confiança entre eles. Posso falar-lhes sobre a tranquilidade que é estarem no paraíso e talvez assim eles não busquem o inferno e não propaguem tão ruins sentimentos.
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E este ser deu-se a obrigação de compartilhar seus conhecimentos, e outros acrescentaram ou distorceram sua pregação ao longo dos anos. Existiram aqueles que continuaram a vagar sobre a massa arredondada, pondo em dúvida a evolução daqueles que um outro ser chamou de humanos. E esse ser que acompanhamos entendeu que somente após ter as experiências que teve pode chamar o que o faz existir de vida.


Um comentário:

  1. Teorias interessantes sobre os sentimentos... gostei!
    Super recomendado e aguardo novos contos `^^´
    Beijos e abraços.

    PS: Leia em voz alta tudo que escrever! É uma excelente forma de revisar.

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